Na tortuosa jornada da individuação nos deparamos com os mais diversos desafios. Nos sonhos, tais desafios podem ser representados por criaturas horrorosas, ferozes, devoradoras… Em estado de vigília, são representados por situações, encontros desagradáveis que inevitavelmente temos que vivenciar…
Eis o desafio de tornar-se quem se é: diante de uma situação desagradável qual tua reação? Procura evitá-la a qualquer custo, pagando o preço necessário, mesmo que além dos seus recursos, para tirá-la da frente? Encara o desafio jogando-se de cabeça, sem crítica e reflexão dos riscos que poderá vivenciar, podendo até sucumbir a tamanha desconsideração? Ou encara o fato desagradável e “bate um papo com ele”?
A terceira saída seria a mais adequada, mas nem sempre possível e ao alcanço de quem enfrenta tais desafios. Requer certa maturidade e estrutura egoica no sentido de suportar a tensão: “se correr o bicho pega, se ficar o bicho come”… Apenas suportando o conflito que a possibilidade de sair dele pode emergir: Porquê não perguntar, conversar com o tal “bicho”: qual a finalidade de você me perseguir? Haja coragem para enfrentar tamanho pavor!!! Quem teve ou ainda tem medo do escuro, bicho papão, fantasma, espírito, aparição, sabe o que estou dizendo…
A perspectiva simbólica me encanta e faz parte do meu jeito de ser e estar no mundo abordar os acontecimentos dentre desta perspectiva: é como se a vida nos apresentasse inúmeros confrontos, eu diria até que seriam “testes” para avaliar e nos mostrar se estamos no “próprio caminho” ou seguindo trilhas batidas que não nos dizem respeito; ou em outras palavras: se estamos no caminho e direção da “meta” da individuação; se somos o rio em busca do mar, ou se nos perdemos e nos represamos em algum ponto de nossa história… Justamente pelo meu viés simbólico, vejo tais desafios como oportunidades, tanto por vivência pessoal, como por acompanhar tantos processos ao longo da minha jornada clínica.
Quando encaramos e conversamos com o “bichão papão” há um posicionamento perante o imponderável, um reconhecimento de sua presença e abertura, de forma que tal disposição já encerra uma saída para tensão. Claro que convêm mencionar, que diante de tal empreitada não há garantia alguma de sucesso ou melhora; servir como alimento de expectativas egoicas não encontra espaço nessa ceara, de forma que nem sempre o desfecho é conforme o esperado; não promove a colheita almejada… Até porquê ao enfrentar tamanho desafio não se faz ideia de que tipo de semente está sendo semeada; mas que há fertilização, não tenho dúvida! Em detrimento dos resultados imediatos, gosto da perspectiva daquela linda história que diz: “quem planta uma árvore, não planta para aproveitar sua sombra; mas porque acolhe o chamado de sua alma e por saber que, de certa forma, “sua árvore” proporcionará sombra para as gerações futuras…”
Diante disso, vejo o quanto a psicoterapia e o trabalho clínico, passam longe, muito longe do clichê individualista, elitista, segregador e assistencialista que se vê por aí. Muito pelo contrário, ao enfrentarmos o desafio de nos tornarmos quem somos, não é apenas o indivíduo quem ganha, mas o mundo, como um todo maior ganha também!!! A sociedade de forma ampla cresce, amadurece, prospera com pessoas mais conscientes. Quanto mais sei de mim, dos meus medos, receios, preconceitos, intolerância, mais sensível ao outro eu fico! Quanto mais me conheço, mais empático posso ser e ao me colocar no lugar do outro não correrei o risco de “me perder” no medo dele… Enfrentando meus monstros internos e externos contribuo para construir um mundo melhor! A ideia de Rizoma de Joseph Cambray, cai muito bem aqui! Assim como numa floresta todas as criaturas que ali habitam estão conectadas em suas profundidades por meio de seus rizomas; assim somos nós! Interconectados não apenas com os “rizomas humanos”, mas com o “rizoma da vida”!
Questionar o que me incomoda, o que me causa medo, pavor, intolerância, desejo, pode representar abertura, possibilidade de diálogo, de integração. Se vejo uma injustiça a ponto de ser tocada e mobilizada por ela e não faço nada com isso, perco muito! Não apenas por não ter protegido o injustiçado, mas como consequência do compromisso ético que tenho comigo mesma! E não assumindo o chamado da minha alma, tocada e mobilizada pela “injustiça”, represo meu rio impedindo-o que alcance a plenitude de encontrar o mar…