A experiência de conduzir o grupo de estudos “Os primeiros passos do jovem psicoterapeuta junguiano” está sendo muito enriquecedora para mim! Aquela frase de Jung que diz: “O encontro de duas personalidades assemelha-se ao contato de duas substâncias químicas: se alguma reação ocorre, ambos sofrem uma transformação. ” é totalmente pertinente ao que os encontros estão me proporcionando! Única diferença é que são várias personalidades e não apenas 2.
Pois bem, quando idealizei o grupo e sua formatação, tinha algumas ideias de por onde seguir, quais diretrizes adotar; formato, frequência e número de encontros, assim como alguns conteúdos imprescindíveis que pretendia abordar. No entanto deixei um espaço para que outras “potencialidades” pudessem vir a se apresentar. Precisei conter minha ansiedade e necessidade de controle, planejamento e programação para deixar que as identidades dos grupos se apresentassem, assim como as necessidades emergissem. Foi assim, que ao longo do percurso inclui encontros direcionados à discussão da Tipologia Junguiana.
Como são duas turmas terça e sábado, no intervalo entre os encontros e a partir do que foi trabalhado no encontro anterior, novas ideias sempre brotam, assim como novo símbolos vêm à tona… Que delícia, refletir, pensar, problematizar, ampliar perspectivas e horizontes! E foi assim que entre terça e sábado da semana passada veio a reflexão sobre o Falso Tipo.
Segundo Von Franz (1990), algumas pessoas sentem dificuldade para descobrir o próprio tipo psicológico, o que segundo ela, se deve ao fato de serem TIPOS DISTORCIDOS ou FALSOS TIPOS: acontece nos casos em que alguém que seria originalmente um tipo sentimento ou intuição foi forçado pelo meio ambiente a desenvolver outra função. Em suas palavras, “suponha-se que um garoto tenha nascido tipo sentimental numa família intelectualmente ambiciosa. Seu ambiente exercerá pressão para que ele se torne um intelectual e a sua predisposição natural como tipo sentimental será frustrada ou desprezada. Geralmente, em casos como esses, a pessoa é incapaz de tornar-se um tipo pensativo, porque o passo seria grande demais. Porém, ela pode muito bem desenvolver a sensação ou a intuição, uma das funções auxiliares, afim de adaptar-se melhor ao meio; a sua função principal está simplesmente “deslocada” do meio em que ela cresce”. (p. 14-15)
Para a autora, existem vantagens e desvantagens nisso. O lado negativo é não ter a chance de se desenvolver desde o início por meio de sua disposição principal; por outro lado, o positivo é que tais pessoas já terão desenvolvido o que cedo ou tarde teriam que desenvolver. Zacharias (2006), problematiza o tipo falso e complementa a visão de Von Franz, dizendo que o tipo falso ocorre quando uma pessoa se identifica com os aspectos dado pelo coletivo social, ou seja, com a persona mais adequada para se viver em um determinado meio. Tal pessoa adere a uma máscara psicológica para conseguir conviver em seu meio, o que não corresponde à sua verdadeira dinâmica intrapsíquica, o que acaba lhe trazendo alguns danos. Ampliando simbolicamente o falso tipo, apresento minha reflexão:
FESTA NO CÉU
Um lindo exemplo da atuação do falso tipo e sua consequente superação pode ser observado na animação “Festa no Céu”, estória que se passa no México e aborda a importante data comemorativa Dia dos Mortos. O enredo aborda a relação de três amigos criados juntos, mas que acabam se separando quando jovens e voltam a se reencontrar quando adultos: Manolo, Antônio e Maria são eles. Manolo nasceu em uma família de toureiros. “Todo Sanches deve ser um toureiro!”, diz o pai de Manolo. Ele até tenta ser, gostaria de ser, mas sua alma é de músico, o que não é visto, reconhecido, aceito e valorizado por sua família, principalmente por seu pai.
A estória se desenrola (recomendo assistir a animação), e Manolo acaba sendo trapaceado e enganado, acabando morrendo para encontrar sua amada, mas não a encontra porque ela não morreu. Para voltar à vida, faz um acordo com Xibalta, Rei do Mundo dos Esquecidos: se vencer o desafio, poderá voltar ao mundo dos vivos e assim reencontrar sua amada Maria. Acordo firmado e Manolo segue em sua jornada heroica, com a ajuda de seus antepassados mortos. Ao longo da animação ele consegue não apenas voltar à vida e reencontra a amada, como também provar a seu pai seu valor como músico e por não concordar com a tourada.
Em uma imagem, que para mim é a mais linda do filme, Manolo enfrenta seu último desafio: deve enfrentar um monstro: a somatória de todos os touros que foram desafiados e derrotados por seus familiares e antepassados. Na grande arena de batalha aparece um animal imenso em chamas. Manolo fica minúsculo diante daquela monstruosidade. Ao ver seu reflexo em seu violão, Manolo cai em si e percebe que aquela batalha só poderia ser enfrentada com seu recurso mais genuíno e autentico: cantar com seu coração. É desta forma que ele então enfrenta a terrível criatura, com um duelo diferente, ELE CANTA COM O CORAÇÃO PEDINDO PERDÃO POR TODO O PASSADO.
Vale muito a pena assistir a cena a qual me refiro:
Versão inglês: https://youtu.be/8-fkmRaX0Wk
Versão português: https://youtu.be/EiX3UUMatFk
Quis compartilhar essa reflexão, pois identificar o “falso tipo” não é restrito ao universo psicoterapêutico. Nos processos de Coaching e Orientação Profissional “falsos tipos” também podem aparecer. Diante disso, o profissional deve estar muito afinado e sensível ao processo para não ir escancarando o tipo distorcido, como parto feito a fórceps. É preciso cuidado, cautela, pois assim como é simbolizado na animação, uma morte precisa ocorrer para o genuíno poder nascer. Adentrar o Mundo dos Esquecidos não é tarefa fácil e que não pode ser empreendida a qualquer momento… Tudo a seu tempo… A vida dá sinais sobre o momento em que a jornada heroica precisa ser empreendida. Momentos de perdas, fracassos, em que nos sentimos no fundo do posso, destruídos emocionalmente pode ser o sepulcro aguardando a transformação morte/vida.
Diante da reflexão apresentada e das discussões propiciadas nos grupos, fica reforçado para mim o cuidado que temos que ter com teorias e instrumentos. Longe de categorizar ou rotular, tais recursos devem estar a serviço de algo maior. Ficar no rótulo não leva a lugar algum, pelo contrário, pode servir a um propósito contrário podendo estagnar e até impedir um processo de transformação. O resultado de um instrumento ou de uma avaliação deve servir como um ponto de partida para se explorar a dinâmica psíquica do sujeito, entender seus meandros energéticos, jamais como ponto de chegada!
E para fechar, mais uma do mestre: “Conheça todas as teorias, domine todas as técnicas, mas ao tocar uma alma humana, seja apenas outra alma humana”. (Jung)
Referências consultadas:
JUNG, C. G., A Prática da Psicoterapia. RJ: Vozes, 1985.
JUNG, C. G., Ab-reação, Análise de Sonhos e Psicologia da Transferência. RJ: Vozes, 1987.
VON FRANZ, M.L A Função Inferior. In: A Tipologia de Jung. São Paulo: Cultrix, 1990.
ZACHARIAS, J. J. M. Tipos a diversidade humana. São Paulo: Vetor, 2006.