Mais uma ideia de Rubem Alves que amei e compartilho. Trata de um assunto que trabalho muito com meus pacientes: sempre precisamos dar vazão e acolher o nosso lado “monstrengo”. Por mais desagradável que isso seja, faz parte da nossa natureza termos esse lado sombrio. Quanto mais negamos esse lado, no intuito se sermos perfeitos, mais autonomia ele passa a ter sobre nós, aparecendo nos momentos menos oportunos, com consequências catastróficas na maioria das vezes.
Conselho a Nelson Freire
(Ostra feliz não faz pérola – p. 26)
“Caro Nelson Freire: ao terminar de ouvir os dois concertos de Brahms interpretados por você, lembrei-me de um incidente que poderá lhe ser de grande valia. Bernard Shaw foi ouvir Jascha Heifetz. Chegando em casa, depois do concerto, escreveu-lhe uma carta imediatamente. O conteúdo era mais ou menos assim: “Prezado senhor Jascha Heifetz. Ouvi-o no concerto desta noite. Voltei para a casa profundamente preocupado. Porque tocando do jeito que o senhor toca é impossível que os Deus não se roam de ciúme – porque é certo que eles não conseguem tocar como o senhor. Eles sentirão inveja. E deuses invejosos são perigosos. Assim dou-lhe um conselho. De noite, antes de dormir, não faça suas orações costumeiras. Pegue seu violino e toque desafinado. Os deuses, ao ouvi-lo, se sentirão aliviados na sua inveja e deixarão o senhor em paz. Atenciosamente, George Bernard Shaw”. Nelson, faço meu o conselho de Shaw. Sozinho, de noite, em vez de rezar, toque mal, esbarre algumas notas, erre… Nenhum crítico o estará ouvindo. Mas os deuses estarão. E eles dormirão em paz e você dormirá em paz. Conselho de seu conterrâneo Rubem Alves.” (Rubem Alves – Ostra feliz não faz pérola)
É mais saudável termos a consciência de que podemos e devemos desafinar, do corrermos o risco de nos expormos a ira dos deuses. Essa crônica ilustra metaforicamente nossa estrutura psíquica. Dentro de nós habitam deuses poderosos, que não aceitam pretensão de perfeição do ego. Eles são perfeitos, o ego não. Portanto, o ego deve reconhecer humildemente sua natureza humana e não desafiá-los, pois poderia não dar conta da punição. Fazemos isso ao reconhecer nosso lado monstrengo, quando sozinhos, no silêncio da noite assumimos que erramos, que não fomos totalmente honestos, entre tantos outros exemplos. Desta forma, tanto os deuses como o ego dormirão em paz, pois o ego estará dialogando e integrando consciente o lado “monstrengo”.